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Mãos à obra: o que há de concreto na reestruturação da Gafisa

Em reconstrução depois de uma gestão turbulenta que chegou a paralisar suas obras, a incorporadora Gafisa retomou os lançamentos e está buscando uma fusão com a Tecnisa, além de mirar outras aquisições e preparar a entrada no segmento de propriedades

Por onde passa, Mu Hak You costuma deixar um rastro de polêmicas. Mas nada se compara aos pouco mais de quatro meses em que o investidor sul-coreano assumiu o controle da Gafisa, incorporadora focada em projetos de média e alta renda, a partir de setembro de 2018.

Entre outras medidas controversas, ele destituiu o Conselho de Administração, demitiu todo o alto escalão, suspendeu o pagamento de fornecedores e fechou a filial carioca. A pá de cal dessa gestão turbulenta veio no fim de janeiro de 2019, com a paralisação das obras da empresa. Três semanas depois, a Gafisa anunciou que You havia renunciado depois de vender toda sua participação na empresa.

Passados 20 meses, a movimentação da Gafisa contrasta com os canteiros inativos e o cenário de terra arrasada deixado por You. A empresa retomou os lançamentos e a compra de terrenos, propôs uma fusão com a Tecnisa, está investindo em aquisições e prepara a entrada no setor de propriedades.

“Nós temos a obsessão de fazer a Gafisa voltar a ser protagonista”, diz Ian Andrade, vice-presidente de finanças e gestão da Gafisa.

Como parte do processo de reestruturação iniciado em abril de 2019, ele divide o comando da empresa com Guilherme Benevides, vice-presidente de operações.

A dupla se reporta ao Conselho de Administração. E no board, um nome se destaca na definição dos rumos dessa reconstrução: Nelson Tanure. Conhecido por mirar empresas em dificuldades, o investidor chegou a Gafisa por meio da gestora Planner, que detém hoje 30% da incorporadora.

Sob as regras ditadas por Tanure, a tacada mais ousada da nova gestão veio na manhã de 19 de agosto, quando a Gafisa propôs uma fusão com a Tecnisa, por meio do fundo Bergamo, que tinha, até então, uma fatia de 3,1% na rival. Hoje, essa participação está em 5,3%.

Em fato relevante, a Gafisa destacou as sinergias da operação. Segundo a companhia, um acordo criaria uma empresa com capacidade anual de lançamentos entre R$ 2 bilhões e R$ 3 bilhões, com um landbank de R$ 10,3 bilhões e uma posição de caixa de R$ 1,05 bilhão.

O movimento surpreendeu o mercado e a própria Tecnisa, que comunicou o recebimento “de forma inesperada” da proposta. Nos bastidores, a reação à oferta hostil não foi nada positiva, o que foi confirmado em duas assembleias nas semanas seguintes.

Fechados com a família Nigri, dona de 26% da Tecnisa, os acionistas da empresa barraram as mudanças propostas pelo Bergamo, que abririam caminho para o acordo. Entre elas, a destituição do Conselho de Administração da companhia e a alteração do limite de poison pill de 20% para 30% do total de ações.

A rejeição não reduziu o apetite da Gafisa, que contratou o Credit Suisse para estruturar uma nova proposta. “Estamos falando de um casamento, não de um caso”, diz Andrade. “E só iremos desistir se nos convencermos de que não há mais um caminho amigável para a fusão.”

Para ele, a operação destravaria o valor das duas empresas, que não estão capturando todo seu potencial no mercado. “A Tecnisa, em função do desequilíbrio operacional, está com apenas três obras em andamento”, diz. “E a Gafisa, pelos recentes solavancos societários, que deixaram sequelas.”

As ações da Gafisa, avaliada em R$ 1,25 bilhão, acumulam uma desvalorização de cerca de 55% em 2020. Já os papéis da Tecnisa, dona de um valor de mercado de R$ 683,9 milhões, registram uma baixa de 52% no ano.

Segundo a Gafisa, a fusão com a Tecnisa criaria uma empresa com capacidade anual de lançamentos entre R$ 2 bilhões e R$ 3 bilhões

Procurada, a Tecnisa informou que não iria comentar a proposta da Gafisa.

Para fontes consultadas pelo NeoFeed, é pouco provável que o acordo seja concretizado, em virtude de alguns fatores. O primeiro deles, a maneira como se deu a abordagem.

“O mercado imobiliário ainda é dominado por famílias e passos muito bruscos como esse não são bem vistos”, diz um executivo do setor. “Foi um movimento ostensivo, em cima de uma empresa que pode não estar bem hoje, mas que tem história. O setor está torcendo para que dê errado.”

A mesma fonte do setor acrescenta: “É muito mais uma estratégia do Tanure para valorizar a ação e recuperar o dinheiro que investiu na Gafisa”, observa. “Ele não está preocupado com o longo prazo. Não é nada muito diferente do que o Mu Hak fez. Só é mais habilidoso e inteligente.”

O fato de o segmento ser caracterizado por sobrenomes fortes também é citado como barreira por outra fonte do mercado. “Não há nada que justifique uma união. São dois bichos distintos”, afirma. “A Tecnisa tem uma cultura de dono, da família Nigri. E a Gafisa, além de destoar desse modelo, virou especialista em problemas de gestão nos últimos tempos.”

Alicerces

O “ataque” à Tecnisa é apenas uma das vias de consolidação da Gafisa. A empresa também enxerga eventuais acordos como o caminho para o desenvolvimento de novos negócios. É o caso da Gafisa Propriedades, braço voltado à renda que será lançado ainda neste ano, com foco nos mercados de São Paulo e do Rio de Janeiro, assim como as demais operações do grupo

“Essa divisão já vai nascer com todos os ativos de lajes comerciais, escritórios e unidades residenciais de um dormitório do nosso portfólio para esse negócio”, afirma Andrade. “E temos quatro ativos em negociação para comprar e integrar a esse braço.”

Segundo o site Brazil Journal, a Gafisa estaria finalizando a aquisição dos shoppings Fashion Mall e Guadalupe, no Rio de Janeiro, com essa finalidade. “Não comentamos especulações de mercado”, afirma Andrade, sobre a reportagem publicada na terça-feira, 27 de outubro.

Com o caixa reforçado por quatro aumentos de capital nos últimos 12 meses, que somaram mais de R$ 800 milhões, a Gafisa também mira aquisições de menor porte, com cheques de R$ 500 mil a R$ 1 milhão. “Estamos olhando construtechs, plataformas de tecnologia e serviços complementares à venda imobiliária”, afirma o executivo.

Gafisa
Crédito: Divulgação

Guilherme Benevides (à esq.), VP de operações, e Ian Andrade, VP de finanças e gestão da Gafisa

Outra frente ativa é a compra de terrenos. No segundo trimestre foram duas aquisições: a primeira, no bairro da Vila Mariana, em São Paulo, e a segunda, no bairro do Leblon, no Rio de Janeiro. Somados, os dois terrenos têm um Valor Geral de Vendas (VGV) estimado em R$ 313 milhões.

A compra do ativo no Leblon simboliza o retorno ao mercado carioca. A estratégia foi reforçada com a aquisição, em setembro, de quatro projetos da construtora Calçada. Ainda na capital fluminense, a Gafisa prepara o lançamento de um empreendimento na Barra da Tijuca, com VGV de R$ 500 milhões.

Em São Paulo, por sua vez, a empresa comprou a Upcon, no fim de 2019, com dois objetivos. O primeiro deles, preencher as lacunas no time de incorporação, uma das heranças deixadas pela gestão de You. Benevides, que hoje comanda a Gafisa ao lado de Andrade, foi um desses reforços.

“Ao mesmo tempo, nós trouxemos R$ 800 milhões em VGV, sendo R$ 700 milhões para lançar e R$ 100 milhões já lançados”, diz Andrade, que ressalta o apetite por novos acordos com essa finalidade. No caso da Upcon, o portfólio inclui terrenos em bairros nobres de São Paulo, como Moema, Jardins, Itaim e Campo Belo.

A retomada dos lançamentos é outro marco da nova gestão. Sem colocar novos empreendimentos no mercado desde o fim de 2018, a Gafisa lançou três projetos no segundo trimestre desse ano, nos bairros paulistanos de Perdizes, Moema e Jardins, com VGV total de R$ 288 milhões.

“Temos um potencial de R$ 1,8 bilhão em 15 projetos aprovados ou em aprovação para lançar em até 18 meses”, afirma Andrade. Ele prefere, no entanto, não fazer nenhuma projeção de VGV. “Não vamos lançar por lançar. É preciso haver demanda e traduzi-la em boas margens e números.”

Mesmo com tantas iniciativas em andamento, há quem duvide que a Gafisa seja capaz de recuperar o prumo. As trocas constantes na gestão e nos executivos da alta cúpula explicam, em parte, esse questionamento. Assim como a falta de um nome que personifique a operação.

“Esse é um setor que exige histórico, constância, compromisso e onde todas as empresas bem-sucedidas têm dono”, diz uma fonte do segmento. “Não adianta ter alguém à frente que entenda de recuperação judicial, mas não de incorporação imobiliária. Não há nenhum veterano na Gafisa.”

A passagem relâmpago de Mu Hak You é mais um fardo. “Tudo o que aconteceu ainda reverbera e só alimenta as interrogações sobre a empresa no mercado”, diz um executivo do setor. “Queira ou não, a visão que se tem é que aquela situação deixou muitos esqueletos na gaveta.”

Alguns números contribuem para reforçar essas dúvidas. No primeiro semestre, a empresa reportou um prejuízo de R$ 49 milhões e um recuo de 20,3% na receita líquida, para R$ 155,5 milhões. As vendas líquidas tiveram queda de 54,4%, para R$ 48,4 milhões.

No primeiro semestre, a Gafisa reportou um prejuízo de R$ 49 milhões e um recuo de 20,3% na receita líquida, para R$ 155,5 milhões

Em contrapartida, a empresa registrou R$ 608,8 milhões em VGV entregue, com seis empreendimentos no período, um salto de 255,3% sobre o primeiro semestre de 2019. A companhia projeta fechar o ano com a entrega de outros cinco projetos.

“Estamos seguindo tudo à risca, pois não podemos nos dar ao luxo de não cumprir o que prometemos”, diz Andrade, que reconhece o caminho a ser percorrido pela Gafisa para restabelecer a confiança perante o mercado. “Não é do dia para a noite que vamos resolver o estrago que foi feito.”

Fonte: NeoFeed

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